Cega desde a adolescência, Camila imagina Flávio, que não é portador de deficiência visual, com os traços da sua imaginação. Quando os olhos de Camila de Morais estão abertos, ela vê apenas duas paisagens. Pelo olho direito, avista um infinito mar de branco, bem intenso. Pelo olho esquerdo, vê uma chuva de azuis e um vagar de manchas negras ou alaranjadas. "Pelo meu olho interno vejo umas coisas nubladas", explica. Em certos momentos, Camila tem lá seus métodos para alcançar nuvens bem mais altas. Escondida por entre as cobertas junto ao seu marido, ela prefere encobrir os olhos cegos com os lençóis de pálpebras. "Ele sempre me pergunta porque eu fecho os olhos na hora do sexo. É porque assim, o imagino melhor".
Cega desde os 17 anos, Camila pôde aprender com a vida que nem toda visão está limitada às imagens que se projetam na retina. Afinal, ela não é cega nos sonhos, na imaginação, nem nas fantasias. "No meu sonho, eu vejo Flávio perfeitamente". Já no sexo, seus olhos são como uma tela em branco, e precisam de cores e tintas. Por isso, o toque não lhe serve apenas como forma de acariciar o parceiro. É com as mãos e os dedos que ela pinta, no fundo dos olhos, cada detalhe do corpo do marido. Com as descrições dadas pelos amigos, retoca sutis desvios. E, no toque final, acrescenta os detalhes que só ela viu. Está pronta sua obra-prima. "Eu imagino exatamente como ele seja. Um galeguinho lindo".
Quando conheceu seu esposo, Camila já não enxergava. Sua visão se fora por conta de uma cirurgia mal-sucedida. Um pouco antes da operação, ela ainda perguntou ao oftalmologista: - Doutor, eu vou continuar enxergando? A voz da confiança estava vestida de guarda-pó e máscara de cirurgia. "Claro que vai". Mas ao despertar da anestesia, as cores do mundo já iam diminuindo. "Todo dia, na hora que eu acordava, meus pais me perguntavam se eu estava enxergando melhor, e nada. Doía muito em mim ter que dizer a verdade para eles". Esperançoso, o pai ainda via uma última chance de brilho nos olhos da filha. "Ele sempre me pedia: ô, minha filhinha, tenta fazer um esforcinho". Mas não adiantavam esforços, porque o ato de enxergar era um dom, um talento singelo que, aos poucos, Camila perdia. Até o dia em que tudo se apagou. Ironicamente, o mundo escureceu em sete dias, o mesmo tempo da criação divina.
"Quando fiquei cega, quis morrer. Achei que nunca iria arranjar ninguém". Mas aconteceu diferente. Camila curtia a Praia de Piatã quando Flávio Gomes apareceu na sua vida. Ela mal o percebeu. Mas da parte de Flávio, foi amor à primeira vista. Os olhos dele esqueceram o mar, e não paravam de contemplar aquela moça de olhar distante, sentada na areia. "Me encantei logo. Achei a Camila linda".
Ausência do olhar Embora o ditado diga que o amor é cego, é difícil imaginar a ausência do olhar numa conquista. Mesmo a metros de distância, os olhos correm ligeiros - podem até se esbarrar no caminho - mas seguem à velocidade da luz por entre a multidão, e são sempre os primeiros a tocar na pessoa escolhida. O que seria de Capitu, de Machado de Assis, sem seus olhos de cigana oblíqua? O que seriam das musas do poeta Vinícius de Moraes?
"O olhar é um estímulo muito importante no despertar da sexualidade", explica Clayton Melo, um dos autores da pesquisa científica realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais, A sexualidade do adolescente deficiente visual de Belo Horizonte: um novo olhar?. A pesquisa da UFMG foi o único trabalho que a reportagem localizou sobre o tema. "Fizemos um levantamento bibliográfico e não encontramos nada que tratasse da sexualidade do deficiente visual", diz Clayton. A omissão acadêmica assusta por ocorrer num país onde cerca de 16,5 milhões de pessoas convivem com algum grau de deficiência visual, o que corresponde a aproximadamente 68% dos portadores de deficiência do Brasil.
Durante o trabalho, Clayton observou que os adolescentes cegos entrevistados costumavam vincular sexo a amor, a carinho e a troca de sentimentos de forma mais intensa que os adolescentes videntes. "Talvez a percepção do sexo vinculado ao amor esteja ligada à sensibilidade aguçada, desenvolvida pela falta de visão", diz Clayton. Na pesquisa, também se destacou a importância de o deficiente visual explorar outros órgãos, não apenas como compensação, mas como uma forma de exteriorizar parte do conteúdo adormecido no subconsciente. "A falta da visão possibilita que essas pessoas percebam mais sutilezas no que ouvem, tocam ou cheiram", diz Clayton. É como se houvesse um pouco dos olhos em cada sentido. É um novo ponto de vista.
"Quando eu enxergava, fazer sexo era muito diferente. Hoje, para sentir prazer, preciso me concentrar muito mais. O toque e as palavras são fundamentais", explica Jamilton Moreira, companheiro de Conceição do Carmo, que também é cega. Na primeira vez que dormiram juntos, os dois vivenciaram uma cena muito inusitada. Tudo porque Conceição teve a santa ingenuidade de confiar demais na cegueira de Jamilton. "Eu não queria fazer sexo com ele naquele dia". Por isso, ela fez parecido com Úrsula, personagem de Gabriel García Márquez, que, em Cem anos de solidão, usava uma calça de lona fechadas com uma grossa fivela de ferro, para evitar contatos íntimos com o marido. Mas em vez de vez de radicalizar com todos esses aparatos - que, por sinal, teriam sido mais seguros - Conceição achou que estaria bem protegida ao vestir nada menos que três camisolas e três calcinhas. Depois, para garantir, se cobriu com duas toalhas e uma coberta. Mas o excesso de panos não foi empecilho. "Tirei tudo pacientemente", diz Raimundo.
Alguns anos depois da união, o casal teve uma filhinha. Na maternidade, a assistente social dificultou a entrega da menina. "Eles achavam que nós não teríamos condição de cuidar, por conta da cegueira". Hoje, passados tantos anos, os dois lembram do contratempo de mal gosto como um detalhe remoto em suas vidas. E, guardado no relicário da memória, o excesso de vestimentas nas núpcias se transformou numa piada muito divertida, uma dessas histórias de alcova que transformam os amantes em cúmplices das travessuras lúbricas. É justamente para evitar novos cúmplices que Conceição e Raimundo sempre praticam um ritual imprescindível antes do sexo: conferem o quarto com bastante cuidado, e só começam a diversão quando estão certos de que não ficou nenhum menino lá dentro.
É assim, cheio de sutilezas, curiosidades, diferenças. Se o amor de um cego é diferente, é diferente da mesma forma como são os amores de qualquer casal. Afinal, são justamente as peculiaridades que dão um brilho, um contraste e um colorido muito especial a qualquer relação. Seria muito sem graça se, independentemente dos seus personagens, o sexo fosse sempre igual.
Marcas do desejo.
Se Camila pudesse mudar um só detalhe no sexo, ela gostaria de enxergar os olhos do homem por quem é apaixonada. "Queria muito ver aquele olhar de desejo, quando a gente sente que o homem está nos despindo com os olhos", explica. "Acho que não me casaria com um cego. Não é preconceito, só que eu não me sentiria desejada". Deytivan Cardoso, 24 é cego desde os 12, discorda que a falta de visão impeça a atração física: "Beleza importa sim". Ele sente quando uma mulher é atraente através da pele, do rosto, dos cabelos, do delineamento do corpo, e também pela voz. "Se eu estiver numa festa, por exemplo, o barulho me atrapalha de analisar se a mulher é sedutora".
A audição também é muito importante no relacionamento de Marina. Afinal, ela nunca sequer encostou no seu atual namorado. Conhece-o apenas pela voz ao telefone e pelas fotos que chegam ao seu e-mail. Ou melhor, por descrições das fotos, feitas por suas amigas. "Tenho certeza que ele é bonito". A história de Marina começou com um ponto. Ela tentava mandar um e-mail para um colega, que nunca a respondia. Um dia, fez um questionamento comum quando se desconfia de e-mails extraviados: - será que havia um ponto separando o endereço eletrônico? Não custava tentar. No dia seguinte, na tela do computador, brilhava uma resposta, que ela ouviu pela voz feminina do seu micro adaptado. "Não sou quem você procura. Mas posso te conhecer melhor?" Marina respondeu falando de si, e contou que era cega.
Daí em diante, foram fotos, e-mails, ursinhos de pelúcia, roupas, perfumes preferidos, centenas de declarações de amor e correspondências. Marina era cega, mas enxergava o Rio de Janeiro pelos olhos de Maurício. "Ele sempre me descrevia como a cidade tinha amanhecido". Com o tempo, as cartas cresceram. Cresceram também a intimidade e a duração dos telefonemas. "Às vezes, ele me liga com a voz toda manhosa e me pergunta o que eu estou fazendo". E se ela não estiver fazendo nada, ele trata logo de matar seu tempo. "Ele vai perguntando se eu não quero fazer sexo bem gostoso", diz ela, com um sorriso assanhado. "Fui no sex shop e comprei um vibrador com as mesmas medidas dele. Uso durante os telefonemas". Marina* não vê a hora de encontrar Maurício. Quer abraçá-lo, beijá-lo, e também fechar os olhos, quando for o momento preciso. "Sei que estamos distantes e que, mesmo se um dia estivermos perto, eu nunca poderei vê-lo. Mesmo assim, continuo apaixonada", diz, convicta. E de pensar que tudo começou com um ponto. Justo com um ponto, que é como terminam as frases. Mas é também com um ponto que começam todas as histórias narradas em braile.
Cegos.
Em termos médicos, cego é quem apresenta desde ausência total de visão até perda de percepção luminosa. Várias podem ser as causas da cegueira, e as mais comuns são ferimentos, vazamentos nos olhos, traumatismos, catarata e glaucoma. No período da gestação, doenças como rubéola e sífilis podem causar a deficiência visual na criança.
Correio da Bahia
Fonte: Vida e Saúde - Terra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário